Em um dos dois únicos filmes que valeram minhas horas em frente a uma tela neste ano, uma cena específica me tocou de maneira um tanto particular. Como parte das medidas práticas para preservar sua integridade física, ameaçada por uma enfermidade que compromete suas funções cognitivas, o personagem principal tenta manter uma rotina com o mínimo possível de variações – o que inclui fazer, todos os dias, exatamente o mesmo trajeto para o trabalho. Um dia, porém, uma obra impede a passagem de pedestres pelo percurso que ele, já às custas de um grande esforço, havia meticulosamente memorizado. Em seu caminho, além de um bloqueio físico, ele se depara também com um gigantesco bloqueio humano: a insensibilidade de um dos trabalhadores da obra, que, sem ter a menor ideia do porquê era tão difícil para aquele transeunte “simplesmente” usar ruas alternativas, friamente o impede de seguir pela única rota que ele ainda conhecia. Extremamente atordoado, ele acaba derrubando um ciclista e escapa por pouco de ser atropelado por um taxista que, igualmente alheio à sua condição, acusa-o de louco e coroa seu sofrimento com buzinadas que lhe soam ensurdecedoras. A brutalidade dos envolvidos e as buzinadas doeram também em mim!
Apesar de curta, tal cena me leva a pensamentos que, devaneadora que sou, renderiam dezenas de páginas. Mas, a propósito do recém-comemorado1 Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, neste momento quero me ater ao intuito único de oferecer minha ínfima parcela de contribuição para tornar mais conhecida, compreendida e, sobretudo, respeitada uma realidade que impacta a vida diária de mais de 1 bilhão de pessoas ao redor do mundo, mas que se esconde além do que os olhos podem ver: as deficiências ocultas.
Voltando ao filme, conhecendo o contexto da trama, é fácil condenar o encarregado da obra, o ciclista e o taxista por suas atitudes grosseiras para com aquele homem. Mas, sendo honestos, é altamente provável que todos nós já tenhamos sido, quer em práticas ou ainda que apenas em pensamentos, igualmente impacientes para com pessoas em situações similares. Afinal, não fomos ensinados a enxergar o que os olhos não veem e nada na aparência daquele personagem indicava qualquer sinal de que ele sofresse de algum tipo de problema físico ou mental – nenhuma dificuldade motora ou visual, portanto, nenhum tipo de acessório para auxiliar em sua locomoção; nenhuma inabilidade na fala, tampouco aparelhos que sinalizassem alguma perda auditiva; muito menos qualquer feição característica de doenças que afetam a fisionomia daqueles que por elas são acometidos. De fato, não nos é natural perceber que por trás de um indivíduo aparentemente normal podem se esconder grandes dramas, dramas estes que podem tornar o que para muitos é a mais simples das tarefas em esforços inimagináveis para aqueles que os vivem. Ironicamente, estima-se que as condições ocultas correspondam a 80% do número total de pessoas com deficiências.
Dentre origens físicas, visuais, auditivas, sensoriais, neurológicas, cognitivas e muitas outras, há dezenas de casos que se enquadram na categoria de deficiências ocultas e eu adoraria dizer que minha sensibilidade a esse tema nasceu somente da conscientização das barreiras que elas impõem ao dia a dia daqueles que as sofrem, mas não foi bem assim. Como em quase tudo na vida, via de regra algo só nos toca profundamente quando faz parte da nossa realidade. Há 6 anos – o que, àquela altura da minha história, foi já muito tarde – também eu fui diagnosticada com uma deficiência oculta: Distúrbio do Processamento Auditivo Central. Para os íntimos, DPAC – uma falha na interpretação das informações sonoras pelo Sistema Nervoso Central, que quase sempre traz consigo uma carga extra (que, claro, haveria de ser o meu caso!): a Síndrome de Sensibilidade Sensitiva do Som. Para os econômicos com as palavras, Misofonia. Não fossem o DPAC e a Misofonia problemáticos o bastante, neste ano – ou seja, ainda mais tardiamente – fui identificada com outra condição que, embora não seja uma deficiência, tem como uma de suas caraterísticas principais algo que também me causa um bocado de complicações: as chamadas “sobre-excitabilidades”.
Cada uma dessas “condições” (aspas porque, a rigor técnico, elas têm classificações diferentes) – DPAC, Misofonia e Sobre-Excitabilidades – merece ser tratada à parte e pretendo não me demorar a fazê-lo. Hoje as mencionei para exemplificar o quão vasto é o universo que existe além do nosso olhar e, dentro do meu pequeno universo, alertar aos poucos que o habitam, especialmente aos que têm filhos pequenos, quanto à importância da identificação precoce de qualquer dificuldade invisível. Mesmo tardiamente, a descoberta de tais condições explicou, ressignificou e redimensionou – e continua a explicar, ressignificar e redimensionar – muitos aspectos da minha vida e da minha personalidade, inclusive o sentido de alguns textos que escrevi muitos anos antes de ter a menor noção do quanto toda a minha existência foi, é e será para sempre pautada por elas. Sei, no entanto, que o diagnóstico na infância e o consequente acompanhamento por profissionais especializados teriam tido o potencial de me conduzir por caminhos muito diferentes dos que trilhei ou de, no mínimo, tornar menos doloridas a tortuosa jornada que me trouxe até aqui e a espinhosa “digestão” dessa descoberta tardia. Sim, é extremamente doloroso se dar conta de que sua história inteira poderia ter sido completamente diferente somente quando não é mais possível voltar ao tempo para mudá-la!
Como uma última ambição, ou desejo de Natal, adoraria que todos tivéssemos um pouco mais de empatia, paciência e delicadeza quando virmos alguém usando o cordão de girassol2 – às vezes, é tudo o que precisamos!
1 Celebrado anualmente em 3 de dezembro, o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência foi criado em 1992 pela ONU – Organização das Nações Unidas, visando promover a compreensão e conscientização das questões concernentes às mais diversas condições de deficiências (visíveis ou não), além de garantir a dignidade, os direitos e o bem-estar de seus portadores.
2 Criado em 2016 no Aeroporto de Gatwick, na Inglaterra, o Cordão de Girassol se tornou um símbolo internacional para as deficiências ocultas e é usado para “discretamente” (vamos combinar que ele não é nada discreto!) sinalizar às pessoas que seus portadores podem precisar de alguma ajuda extra ou simplesmente um pouco mais de tempo para compreender/executar tarefas que indivíduos sem deficiências fariam mais agilmente.
🎬 A VIDA É AGORA [Here Today]
Direção: Billy Crystal
Roteiro: Billy Crystal & Alan Zweibel
Elenco: Billy Crystal, Tiffany Haddish, Penn Badgley, Laura Benanti, Louisa Krause
No início deste ano, em um esforço para encontrar um filme que me despertasse um mínimo de interesse em assistir, deparei-me com uma breve sinopse sobre uma inesperada amizade entre um escritor outrora famoso e uma talentosa cantora desconhecida. Amizade, música e escrita: os três elementos que constituem a essência de quem eu sou juntos no mesmo enredo. Parecia não ter como dar errado. Não havia indícios de potenciais surpresas desagradáveis (embora, em se tratando de filmes, este risco seja sempre elevadíssimo para uma pessoa que não tolera ver a menor das cenas de violência). Poderia não me arrebatar, como nenhuma obra da sétima arte jamais conseguiu, mas seria o suficiente para me distrair por duas horas – e, dado o então recém-diagnóstico de uma doença devastadora na família, eu precisava de alguma distração.
Acontece que, além de sempre criativa, a vida às vezes é também um tanto irônica. Depois de anos de filmes, séries, livros, artigos e, sobretudo, vivências pessoais onde o onipresente vilão das histórias, fictícias ou reais, foi sempre o implacável câncer, dessa vez, logo no primeiro filme que finalmente me disponho a assistir após o fatídico diagnóstico, o personagem principal é acometido pela, adivinhem só!, mesma doença que acabara de ser introduzida à minha realidade: uma demência. Àquela altura, já havia pesquisado o suficiente sobre o tema para prever a fala da médica quando indagada sobre qual tipo específico de demência o protagonista sofria: o diagnóstico definitivo só pode ser confirmado após a morte, através de uma autópsia. E, assim, o que era pra ser apenas um entretenimento acabou ganhando uma quarta camada de conexão.
Sinceramente, o trailer abaixo não é dos mais convincentes e os primeiros 10-15 minutos do filme são um pouco duvidosos. Mas, passado esse começo meio desengonçado, a narrativa pega liga e revela, além de alguns dramas delicados, o desenvolvimento de uma amizade rara, verdadeiramente pura e encantadora!