Ao invés de terra granulada embebida em água, densos sentimentos encharcados em amargas lágrimas: é esta a composição da areia movediça que há tempos paralisava meus movimentos, sufocava minha respiração, cegava meus olhos, roubava deles o direito ao sono e ainda hoje atrasa meus passos. Os inúmeros grãos que nela se misturam são fragmentos de fato rochosos: cobranças, hipocrisias, incoerências, injustiças, revoltas, indignações, impotências, frustrações, fracassos, arrependimentos, culpas, feridas, mágoas, raivas, rancores, ódios, iras – ciladas nas quais fui manipulada a cair ou que talvez tenha construído pelas minhas próprias mãos. Olhava ao redor e não via como escapar. Dentro de mim, ninguém mais havia. A fé que supostamente me salvaria muitas vezes se afundava junto comigo. Só podia ser o fim.
Às vezes só mesmo por uma reviravolta daquelas dignas de tramas literárias é possível reescrever uma história. Foi pela hipótese mais mirabolante já elaborada a meu respeito que acabei chegando ao melhor destino que uma pessoa em busca de respostas poderia chegar. Desde então, conduzida pelas mãos de quem em segurança redireciona meus passos, iniciei uma jornada que jamais havia imaginado trilhar. Quer dizer, a estrada é velha conhecida, mas nunca havia cogitado permitir que alguém a percorresse comigo, muito menos imaginado que esse alguém lançaria coloridas luzes a seus buracos mais profundos e sombrios. Mas não tem jeito! Cada vez que a encaro de perto, constato que os danos são muitos. Alguns, irreversíveis; outros, restaurados por baixo das emendas; outros, em obras de recuperação ou aguardando suas vezes.
Ainda há muita areia por todos os lados e de tempos em tempos o volume volta a subir, ameaçando a frágil estabilidade. Mas, como que lentamente escorrendo por uma ampulheta, cada um daqueles fragmentos rochosos tem sido redimensionado e ressignificado. Às vezes me surpreendo ao perceber que alguns estão mais leves e já não me prendem por completo a um poço sem fundo. Aos poucos, consigo mover partes do corpo, respirar porções de ar puro, vislumbrar vultos e cores, tirar breves cochilos e dar curtos passos, mesmo que muitas vezes com receio de que no sentido contrário ao que deveria. Não há dúvidas: apesar de todas as limitações impostas por esse lamaçal insalubre, este foi, não por acaso, o ano mais terapêutico da minha vida. O que o próximo trará não sei, mas sei que é preciso seguir – e que terei com quem seguir. Sigamos!
▷ Dedicado à minha “pacata (e visionária!) cidadã” que enxergou em mim a mais inusitada explicação para as idiossincrasias que tanto pesam a “mochila” sobre minhas costas e também à melhor companhia que eu poderia ter desejado para embarcar comigo e me guiar nas minhas mais profundas viagens. Merci pour tout! ♡
♪ SIGAMOS
5 A Seco [Pedro Altério, Pedro Viáfora]
Desde a primeira vez que ouvi Sigamos, logo soube que ela seria a trilha sonora perfeita para me despedir de 2024 neste “espaço” que reativei em setembro* com uma saudação simples, porém carregada de simbolismos profundos: “Oi Mundo”. O título me foi sugerido em uma referência satírica a uma atividade típica entre estudantes e profissionais de um universo onde eu definitivamente não quero que meus pés se afundem outra vez. “Viajante” que sou, logo percebi que o lugar onde quero morar pra sempre – cujas estradas são forradas não por lama, mas por cores, aromas, sabores, palavras e, sobretudo, (muitas) músicas – é também um universo. E, assim, “Oi Mundo” se tornou uma das primeiras “rochas” ressignificadas neste ano que, apesar de grandes dissabores, trouxe-me também a mais doce surpresa que eu poderia ter desejado.
Outra percepção que não tardou a saltar aos meus olhos é a de que, além de uma maneira de colocar um pouco de ordem às vozes em constante ebulição dentro de mim, as palavras que aqui registro são uma tentativa de lidar, talvez de me reconciliar, também com o mundo que é comum a todos nós – mundo este que, aos olhos de alguns, incluindo os meus, é, infelizmente, por demais complicado,1 lugar terrível para se viver,2 louco,3 insano,4 mas que, apesar de tudo isso, não nos faz desejar a morte. Ao contrário, por ele seguimos através dos anos, de planos em planos esperando que algo de bom enfim aconteça. Hoje é quase com algum espanto que vejo o quanto as trilhas desses mundos tão inóspitos e do mundo que em silêncio tento construir para sobreviver estão estreitamente interligadas. Que meus pés não se percam pelo caminho!
[faixa #9 na playlist Musings N’ Music Soundtrack]
1 Referência a O Mundo Anda Tão Complicado, de Renato Russo (Legião Urbana), comentada em Saudade De Um Mundo Que Não Existe Mais.
2 Referência a Reflections Of My Life, de Junior William Campbell e Thomas McAleese (Marmalade), comentada em Enquanto Ainda Estamos Vivos.
3 Referência a Mad World, de Roland Orzabal (Tears For Fears), comentada em Enquanto Ainda Estamos Vivos.
4 Referência a Sigamos, de Pedro Altério e Pedro Viáfora (5 A Seco), comentada acima.
*Embora reestruturado em setembro de 2024, este site foi originalmente criado em 27 de novembro de 2023 com o texto Enquanto Ainda Estamos Vivos, aqui republicado no aniversário de um ano.