Pra Não Dizer Que Não Falei Do Rock In Rio

Ginásio do Maracanãzinho, Rio de Janeiro, setembro de 1968 – Não, eu não estava lá, mas contam-me os (arcaicos) livros de História que o público do Festival Internacional da Canção se agita, por indignação, ao ouvir que “Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores”, clássico de Geraldo Vandré que marcou toda uma geração que cresceu sob a opressão de uma ditadura militar, perde o primeiro lugar do concurso para “Sabiá”, que, verdade seja dita, a despeito da relevância de seus compositores (Chico Buarque e Tom Jobim) para a música brasileira, soa, para ser gentil, um tanto insossa (ao menos aos meus ouvidos). Os gritos da multidão enfurecida escancaravam o óbvio: sim, era marmelada!

Cidade do Rock, Rio de Janeiro, setembro de 2024 – Não, (GRAÇAS A DEUS!) eu não estava lá, mas contam-me os (moderníssimos) sites de notícias que o público do Rock in Rio se agita, por aclamação, ao ouvir “músicas” (haja aspas!) de nomes que jamais serão mencionados aqui e ritmos que nunca tiveram a menor relação com o gênero que dá nome ao evento. De novo, tem gosto de marmelada, só que, justiça seja feita, dessa vez encomendada, em grande parte, pelos próprios consumidores de música, cujos ouvidos (e neurônios) se deterioraram gravemente com o passar do tempo.

Sim, é verdade que, desde sua primeira edição, o festival nunca foi um reduto exclusivo do rock, mas uma coisa até relativamente tolerável é não ser somente sobre rock; outra, inadmissível, é virar baixaria! Para me limitar às fronteiras do Brasil, os artistas “alternativos” que participaram de temporadas anteriores costumavam, no mínimo, saber usar com alguma decência nossa belíssima língua portuguesa. Agora em 2024, fazendo vistas (absurdamente) grossas para o conteúdo e atendo-me apenas à forma, ao ler sobre um acidente ocorrido na cidade no sexto dia de espetáculo show de horrores, deparo-me com um inusitado desafio à minha matemática: um indivíduo do qual nunca tinha ouvido falar (e eu era bem mais feliz assim!) consegue a proeza de colocar em uma declaração de poucas palavras mais erros gramaticais do que eu teria suposto que aquela breve fala pudesse comportar; até desisti de contar. Doeram-me os ouvidos. Para meu completo desespero, soube que o tal ser estava entre as atrações do dia. Doeu-me o coração!

E não é só o Rock in Rio que faz o coração doer. Poucos meses atrás, na mais famosa praia do mesmo Rio de Janeiro (ô cidadezinha que anda sem sorte!), uma certa Rainha do Pop, conhecida por dar ordens expressas para que seus “serviçais” não olhem diretamente para ela, entregou a seus “súditos” um outro show de horrores que mais parecia uma orgia pública encenada não apenas para a plateia ali presente, mas também transmitida ao vivo para milhões de espectadores cujos pés estavam fora das areias de Copacabana. Sim, Madonna tem meia dúzia ou (bem) menos de músicas até relativamente boas e criou um duplo sentido verdadeiramente genial ao mesclar elementos sacros e profanos na provocativa “Like A Prayer”. Mas uma coisa é instigar o pensamento, fomentar a imaginação, atiçar as instituições; outra, completamente diferente e desrespeitosa, é violentar os olhos de multidões (muitas vezes compostas inclusive por crianças que sequer escolheram estar ali) com cenas que deveriam estar, quando muito!, cercadas por quatro paredes ao redor dos que as protagonizam. É fato que quem voluntariamente se submete ao seu reinado já sabe o que esperar de suas atuações. O que dói é ver aquelas imagens amplamente divulgadas e até mesmo ovacionadas pela imprensa e veículos “especializados” de um país inteiro. Acho “engraçado” (ah, essa minha limitação com as palavras!) que, enquanto aqueles números – deliberada e meticulosamente planejados para chocar – foram aplaudidos e repercutidos por toda uma nação, quiçá mundo afora, soube que em um condomínio que ocasionalmente frequento houve denúncias de que uma senhora que sofre de demência – uma doença que retira do indivíduo sua capacidade cognitiva, portanto, de agir conscientemente – às vezes, no mais profundo de sua ingenuidade, circula pelos corredores desprovida de algumas peças de roupa. Não me espantaria saber que os moradores que se sentiram ofendidos pela inesperada criatura foram alguns dos milhões de hipnotizados que vibraram com os excessos descabidos de sua “rainha”.

De volta à Cidade do Rock, já há muitos anos meu desgosto é tanto que eu sequer planejava gastar meu precioso tempo escrevendo uma única palavra sobre o assunto. Mas, para não dizer que não visualizei flores neste jardim de dolorosos espinhos, no pouco que assisti das apresentações de Cyndi Lauper e Gloria Gaynor encontrei novas inspirações de vida.

Na contramão de tanta arrogância e vulgaridade e sem o peso de uma coroa de vaidades para sustentar, Cyndi, muito decentemente vestida, não precisou de qualquer pirotecnia para prender a atenção dos que estavam ali para ouvir o que ela tinha de melhor a lhes oferecer: uma voz incrivelmente potente aos (plenos) 71 anos! É uma relação inversamente proporcional que há tempos observo: quanto menos talento têm os supostos cantores, mais recorrem a dançarinos, efeitos visuais, equipamentos para voar sobre o palco, fogos de artifício e quaisquer outros malabarismos que lhes pareçam úteis para desviar a atenção de seus ouvintes do fato de que suas vozes e “obras” em si não são lá muito impressionantes (em tempo: sim, claro que há artistas que se valem de tais recursos não para distrair os fãs de suas fraquezas, mas para envolvê-los ainda mais profundamente no contexto de suas criações). Cyndi de fato foi além de sua voz, mas em outros sentidos. O espanto com que observava os aventureiros que passavam de tirolesa à sua frente revelava um encantamento quase pueril; por pouco não se esqueceu de cantar. A generosidade com que permitiu que vocais de apoio e músicos de sua banda tivessem momentos de destaque, bem como apresentou cada um pelo nome ao final de sua performance, demonstrou sua consciência de que uma estrela de seu porte não se faz sozinha. A simplicidade com que abriu, ela mesma, sem qualquer gesto cuidadosamente calculado, uma caixa de lenços para enxugar seu rosto, me fez enxergar na figura conhecida pelo visual por vezes excêntrico um ser humano essencialmente comum. A forma com que se desculpou algumas vezes por não falar português, alegando que nem mesmo seu inglês é bom, transmitiu-me bom humor e humildade. As repetidas vezes em que perguntou às pessoas como elas estavam me fizeram crer (talvez ingenuamente, eu sei) que ali estava alguém que genuinamente se importa com os que estão ao seu redor. Para isto vive um verdadeiro monarca: servir aos seus súditos, não para ser tolamente idolatrado por eles.

Gloria, por sua vez, como era de se esperar de um dos maiores ícones da Era Disco, de fato adiciona ao palco incontáveis cores e luzes. Tais elementos, no entanto, nem por um segundo ofuscam o brilho de sua sofisticada banda, muito menos da voz vinda, inacreditavelmente, de uma garganta de 81 anos! Isto mesmo: oitenta e um anos e cheia de uma vitalidade e de um fôlego que não me lembro de ter tido sequer no auge dos meus já longínquos 20. Chega a ser irônico imaginar que, se nos encontrássemos em uma fila de atendimento, ambas – Gloria e Cyndi – teriam prioridade sobre mim, que, apesar de algumas décadas mais jovem, mal aguento 5 minutos em pé. A propósito de “ambas”, sim, sei que nem tudo em suas discografias é fruto do mais requintado lirismo poético, muito menos dos mais elevados valores morais. Sei também que ambas defendem causas que jamais apoiarei, mas o fazem pela força de suas vozes, não apelando para obscenidades que jamais poderiam ser chamadas de Arte. Eis a importância da forma: há pessoas que cobram respeito de uma maneira tão desrespeitosa (que contradição!), em muitos casos agressiva, que me causam aversão até mesmo ao mais nobre dos ideais! Pela naturalidade de suas palavras (julgando apenas pelas cenas que vi), Gloria e Cyndi têm meu respeito mesmo quando não concordo com elas. Dois grandes shows e preciosas lições de vida à parte, não há mais o que valha a pena comentar. Só me resta desejar que eu realmente consiga sobreviver!

Mesma cidade, mesmo mês, mesmo tipo de evento; as semelhanças entre eles acabam aqui. Cinquenta e seis anos depois daquela noite de indignação que entraria para a História do país, o Brasil não é mais o mesmo; o Rio de Janeiro não é mais o mesmo; o mundo não é mais o mesmo; os festivais de música (há muito) não são mais os mesmos; o público de agora, definitivamente, não mais compartilha das mesmas lutas, menos ainda do mesmo senso moral e crítico do público de outrora. Um curioso detalhe, no entanto, insiste em me saltar aos olhos: a semelhança entre a sigla do entretenimento do ano – RiR – e a sigla da expressão que, em inglês, deixa claro o real estágio ao qual, há tempos, chegou aquele que um dia nasceu para ser um festival de rock – RiP (Rest in Peace). Em bom português: Rock in Rio, descanse em paz! ✝

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