É aniversário dela hoje. Setenta e três anos de vida; exatos dois desde que alguns comportamentos até então esporádicos, às vezes quase cômicos, deixaram claro que eram sinais de algo infinitamente mais grave do que eu poderia supor. A distância física não me permitiu discernir com exatidão, mas parece que foi em um piscar de olhos que tudo começou a desvanecer. Alguns anos antes, a visão e a destreza já haviam de fato enfraquecido, roubando-lhe o ânimo de bordar pontos em cruz tão perfeitos que faziam o avesso parecer o lado direito; contornar com crochê panos de pratos, toalhas de banho ou de mesa, qualquer pedaço de pano que lhe parecesse melhor com uma moldura; tecer roupas e tapetes de tricô; pintar em telas paisagens que só existiam em seu mundo de fantasias; desenhar uma das mais lindas rosas que já contemplei e que agora vislumbro somente na minha memória. Ainda assim, não satisfeito em debilitar seus olhos e movimentos, o tempo – implacável, cruel, inevitável – resolveu golpear também suas duas maiores habilidades.
“Irritante”: é assim que alguns classificam a minha memória, que certa vez chegou a ganhar uma explícita, pública e engraçada declaração de ódio. Mal sabem que a memória que transparece de mim é uma versão já filtrada pela tentativa consciente – e vã! – de não ser igual a ela. Em uma rara ausência de receio de perceber alguma faculdade minha como extraordinária, ao menos no meu universo particular e em determinados contextos, parece ser notável que tenho, sim, uma memória bem superior à média; só não superior à dela! Para mim, era a memória dela que era absurdamente irritante! Por isto que sigo tentando não me lembrar de cada detalhe de tudo, o que é um esforço inútil! Quando dou por mim, já decorei inclusive o que sequer desejei ter conhecido. Mas preferiria ter herdado sua velocidade de pensamento. Quando era de seu interesse, raciocinava assustadoramente rápido, de carona com a luz! Pena que nem tudo a gente escolhe. Quanto mais preciso que meu raciocínio seja rápido, mais ele faz questão de atrasar o passo! Parece pirraça.
Quase da noite para o dia, no entanto, através de uma tela que não era de cinema, a mais inimaginável das cenas se concretizou bem diante de meus olhos: a mente que, muito antes dos modernos sistemas informatizados, passou quase trinta anos calculando à mão os salários líquidos dos servidores da educação de um estado inteiro, de repente, apesar de esforços visivelmente desgastantes, não conseguiu responder quanto é vinte menos cinco. Vinte menos cinco: poucas contas são mais simples, mas o resultado não saiu nem depois de uma hora tentando levá-la, passo a passo, à construção do pensamento. Foi só então que liguei os pontos que antes pareciam meras confusões naturais de uma idade já avançada: datas memoráveis estavam faltando em seu calendário; imagens íntimas haviam sido apagadas de sua retina; grandes capitais haviam sido riscadas do mapa; filtros sociais elementares não eram mais aplicados; pessoas do presente não eram mais reconhecidas e pessoas do passado eram lembradas do nada. “Alzheimer”, deduzi precipitadamente.
Desde criança sempre dei como certo o mais óbvio dos diagnósticos: um câncer de pulmão a tiraria de cena. Este é um tema que há tempos me aterroriza quase todos os dias. Onipresente nos livros que li, filmes e séries que assisti, relatos de pessoas próximas e, sobretudo, nos dois últimos anos de vida do meu amado filho de quatro patas, nenhuma doença me parece mais sofrida para o próprio enfermo do que o maldito câncer. É um “curou/voltou” que se repete até o fim – o que, no meu conceito não é cura, mas apenas o prolongamento da dor e o adiamento do inevitável. Causa-me pavor a ideia de ter que reviver, em qualquer papel, esse martírio. Porém, como sabiamente observou uma amiga especialmente querida, a vida é sempre muito mais criativa do que a gente consegue imaginar. Ao invés de um previsível câncer, eis que nossa expert em criatividade me surpreende com uma demência – e, para se superar, Demência Frontotemporal, um tipo ainda mais grave (coisa que eu nem sabia que existia) do que o já velho conhecido Alzheimer.
Se por trauma pessoal não acredito em cura de câncer (podem chamar de ignorância; não ligo), no caso das demências meu ceticismo tem base científica: não há cura, nem regressão; são doenças que degeneram suas vítimas, gradual e irreversivelmente. E se, por observação, creio que nada seja mais esmagador para o próprio paciente do que o câncer, por vivência, nada me parece exaurir as pessoas próximas mais do que uma demência. É claro que qualquer enfermidade traz suas complicações e angústias para todos os envolvidos, mas na demência, além das medidas práticas que se complicam a cada dia, acompanhar uma pessoa que perde, lentamente, seus movimentos, suas habilidades cognitivas e suas mais preciosas lembranças é ver alguém morrer em vida. Como sequer percebe o que se passa ao seu redor, esse alguém parece ser poupado da dor, mas é também privado de ser – e saber – quem é. É indescritivelmente triste! E é também sofrer o luto de uma morte que não acontece em um instante, mas em um processo sem data de começo nem de fim.
É aniversário dela hoje. Mas nunca deixou de ser criança. Nunca disse, mas sei que sempre quis ter uma festa – um dos muitos desejos sufocados, primeiro pela vida que lhe foi possível, depois por ter se acostumado a migalhas e renúncias. Nunca teve. Nunca terá. Por, compreensivelmente, não ter conseguido se reerguer das vezes em que foi duramente lançada ao chão, a solidão que outrora lhe foi causa de grandes quedas agora é o fruto que colhe das sementes nocivas que, ciente ou não, fez questão de plantar. Para alguns, é um castigo merecido; para outros, uma consequência natural. Não lhe têm amor, nem tempo, nem cuidado. Suas histórias lhes cansam. Entre alguns e outros, eu a vejo agora com um olhar mais amplo do que havia visto até aqui. É tarde demais! Resta-me crer que, para quem amargou tantas privações, abusos, desilusões, ausências e desfortúnios, em se tratando do tempo no qual ainda (sobre)vive, bem como dos objetos que hoje poderia ganhar dos poucos que ainda lhe têm algum afeto, talvez esquecer seja mesmo o seu melhor presente.
♪ MEMÓRIA DEGRADÊ
Mar Aberto, com participação especial de Flávio Ferrari [Fernanda Queiroz, Flávio Ferrari, Gabriela Luz, Thiago Mart]
Ao longo das últimas décadas, os avanços científicos nos cuidados com a saúde trouxeram ao mundo a possibilidade de uma vida mais longeva, mas também um efeito colateral pra lá de indesejado: um aumento significativo dos casos de demências – doenças generativas das quais gerações passadas mal ouviam falar, mas que hoje, de tão comuns, são retratadas em livros, filmes e também nos delicados e sensíveis versos de Memória Degradê, canção lançada pelo duo Mar Aberto com o intuito de oferecer um abraço em forma de música àqueles que cuidam de entes acometidos pelo desbotar de suas lembranças. Confesso que é uma obra que não consigo ouvir com frequência, pois sei que, para quem tem que cuidar de alguém como a personagem principal da estória acima, esse abraço, infelizmente, esconde dolorosos espinhos. Ainda assim, é uma composição que merece ser conhecida. Acho sempre fascinante como poetas conseguem colocar em versos tão poucos e simples a beleza que não consigo expressar nem com zilhões de complexos parágrafos.
[faixa #3 na playlist Musings N’ Music Soundtrack]