A morte está no ar! Hoje, em uma tradição maligna que, dados os rumos que a humanidade vem tomando, não surpreendentemente ganha cada vez mais adeptos ao redor do mundo (não vejo a hora de os vizinhos removerem da minha vista os shows de horrores que chamam de “decoração”); no próximo sábado, em cerimônias que fiéis de algumas crenças religiosas dedicam à memória de seus entes queridos.
Tradições e crenças à parte, este me parece um ótimo momento para encararmos o grande destino do qual ninguém poderá escapar a partir de uma perspectiva prática, que nos permita viver de modo que, quando chegar nossa vez de sermos lembrados, sejamos lembrados com saudade, não com alívio por termos partido.
Um dos dois livros que considero tão essenciais ao crescimento pessoal que enviei cada um para mais de 25 amigos (perdi a conta dos que comprei em lojas físicas), para quem quer deixar saudades, A Morte É Um Dia Que Vale A Pena Viver, da extraordinária Dra. Ana Claudia Quinta Arantes, é leitura obrigatória! Minha alegria de hoje é estrear minhas leituras sobre livros com uma obra de tamanha envergadura!
[Para aqueles que já leram este texto e ficaram preocupados com os desabafos ao final: podem ficar sossegados! Os sentimentos que outrora fervilhavam no meu coração hoje são aquecidos, no máximo, em banho-maria. Também eu caí nessa armadilha perversa plantada por quem vive e morre como um completo egoísta! Mas mantenho os desabafos! Tanto egoísmo será sempre inaceitável!]
A Morte É Um Dia Que Vale A Pena Viver*
E Um Excelente Motivo Para Se Buscar Um Novo Olhar Para A Vida
Em um dos períodos mais turbulentos pelos quais passei, depois de ter feito tudo o que estava ao meu alcance para resolver um problema, tudo o que eu podia fazer era esperar que as outras pessoas terminassem suas tarefas antes do prazo – que elas acabaram perdendo e, assim, atrapalhando o resto de toda a minha vida!
Esperar nunca foi meu forte! Para piorar ainda mais as coisas, você sempre encontra uma alma iluminada e bem intencionada para lhe dizer: “Ah, não se preocupe; seis meses passam rápido”. Enquanto esperava pela resposta que precisava, me deparei com uma entrevista em que uma médica discutia diversos aspectos relacionados aos cuidados paliativos. Tendo passado por algumas experiências negativas com profissionais de saúde, fiquei encantada pela forma como ela abordou um tema tão delicado e, sobretudo, pela perspectiva humana que coloca na sua prática médica. Para melhorar ainda mais minha impressão, entre outros temas, ela mencionou um evento que mudou sua noção de tempo. Certa vez, ela quebrou o pé e levou cinco meses para voltar ao trabalho. As pessoas diziam para ela: “Nossa, mas passou rápido, né”? Ela respondia: “Você acha que cinco meses passam rápido? Você está precisando quebrar o pé”.
Foi assim que tive meu primeiro contato com Dra. Ana Claudia Quintana Arantes e aquela afirmação em particular adicionou uma camada extra de conexão a um vínculo que já havia sido criado desde as primeiras linhas da entrevista, mas foi só no início do ano passado que finalmente pude ler seu best-seller A Morte É Um Dia Que Vale A Pena Viver. Desde o primeiro parágrafo, minha identificação com ela cresceu ainda mais. Ela estava em uma festa com muitos estranhos que, ao saberem que ela era médica, fizeram-lhe uma das perguntas mais triviais para este contexto: “Mesmo? Que máximo! Qual é a sua especialidade?” Eu me imagino no lugar dela. Luzes baixas, música alta, vozes ao redor, você na verdade só queria ficar quieto em sua casa, mas um mundo de pensamentos vem à sua mente enquanto você se pergunta: “Como vou explicar para essas pessoas o que faço? Elas estão preparadas para ouvir a verdade e lidar com algo tão diferente? Quanto tempo/interesse elas realmente têm”? Como se não bastasse me imaginar naquela cena para sentir sua dor, o próximo capítulo começa com uma das afirmações que melhor me resumem: “Eu vejo as coisas de um jeito que a maioria não se permite ver”. E aqui eu destaco que a versão em inglês fez uma excelente adaptação ao incluir “eu vejo as coisas de um jeito diferente, de um jeito que a maioria não se permite ver”. Pode parecer redundância, mas quando se é diferente, toda ênfase é muito bem-vinda!
Só quem vê as coisas de forma diferente – um rio à beira de uma garça ao invés vez de uma garça à beira de um rio – sabe o quão desanimador, doloroso, cansativo, estressante e insuportável pode ser ter uma linha de raciocínio simples, porém diferente. A mensagem clara que ouvimos em tudo o que fazemos/pensamos é: “você, encrenqueiro que se atreve a desfazer tudo o que é normal, você está errado”. Assim, rapidamente percebemos que simplesmente não cabemos em lugar algum e, sabendo que não seremos compreendidos ao apontar o que os outros não estão enxergando, desistimos de compartilhar nossas perspectivas e as guardamos apenas para nós mesmos, esperando que eventualmente encontremos alguém que entenderá nossos pontos – o que é um interminável tempo de esperas! No fundo, porém, esses pensamentos gritam cada vez mais altos. A inconformidade com regras absurdas e a falta de boa vontade das pessoas, a ousadia de questionar os sistemas, a necessidade de tornar as coisas mais fáceis, a incapacidade de aceitar “não”, “não é possível” ou “aqui sempre foi assim” como resposta (deve haver algo que possa ser feito!) – todos esses sentimentos são uma angústia que nunca morre! Apesar de ter 100% de consciência de que nunca conhecerei a Dra. Ana Claudia, saber que alguém nesse mundo sente o mesmo que eu é de certa forma reconfortante, pois me faz sentir um pouco menos sozinha.
Por mais desafiador e doloroso que seja ver as coisas de maneira diferente, tenho certeza que foi essa habilidade inata, somada a uma doença vivenciada na própria família, que a levou a se tornar não apenas uma das médicas mais respeitadas do Brasil atualmente, mas também – e acima de tudo – esse ser humano que aprendi a admirar tanto. Para mim, essa é sua maior conquista: apesar de ter se tornado médica, ela continua sendo “simplesmente” um ser humano – e do tipo que busca ser hoje melhor do que foi ontem, amanhã melhor do que é hoje, e assim por diante. Deixando bem claro, para mim não há nada mais decepcionante em profissionais de saúde do que pensarem que são semideuses (bem, priorizar o ganho financeiro em detrimento do bem-estar dos pacientes é igualmente decepcionante). Além de não se considerar superior aos demais seres humanos, adoro a maneira como ela quase reduz a Medicina a um campo trivial, no qual qualquer um pode ter sucesso, bastando se esforçar em seu estudo. Gosto ainda mais quando ela diz que a Psicologia, sim, é uma área de fato complexa. É claro que a Medicina é vital para nos manter vivos, mas é quando se trata de sentimentos/traumas/almas – o quê e quem realmente somos como seres humanos – que a verdadeira complexidade começa. Portanto, não faz sentido considerar a Medicina uma ciência superior, ou ver os profissionais de saúde como indivíduos superiores, quando é o que está em nossas almas que acabará por dar sentido à vida dos corpos que muitos médicos tão arrogantemente se gabam de serem capazes de salvar.
O seu objetivo, claro, não é subestimar a relevância da Medicina, mas chamar a atenção para o fato de que o que se ensina nas escolas de Medicina não é suficiente; lidar apenas com as doenças não é suficiente. Para ser um bom médico é preciso aprender a lidar com todos os aspectos da vida humana, inclusive a morte. Indo mais fundo, o que ela nos mostra ao abordar um assunto tão delicado com doses equilibradas de objetividade, honestidade (às vezes contundente), sensibilidade, insights brilhantes, conselhos práticos e sábios, e um senso de humor particularmente raro e salpicado por uma pitada de sarcasmo (com o qual eu muito me identifico!) é que, para ser um bom médico, é preciso ser (ou pelo menos desejar e se esforçar para ser), antes de tudo, um bom** ser humano – o que, em última análise, deveria tornar este livro um curso obrigatório em todas as faculdades de Medicina e, acima de tudo, uma leitura obrigatória para qualquer ser vivo que pretenda se tornar humano (pois este é um esforço diário que vai muito além de ter nascido em forma humana).
Muito além de provocar seus colegas a repensarem a forma como praticam a Medicina, a Dra. Ana Cláudia lembra-nos os desafios que todos enfrentamos no dia a dia: não levar as coisas para o lado pessoal; não julgar relacionamentos, principalmente os familiares; não tirar conclusões precipitadas; não acumular ressentimentos e traumas; não perder tempo com coisas bobas/desnecessárias; ficar calado quando não conseguimos encontrar as palavras certas; perdoar-nos pelos nossos próprios erros; valorizar o ser ao invés do ter; aproveitar as chamadas “coisas simples” da vida; fazer o que realmente tem sentido e nos dá um propósito de vida – coisas que todos gostamos de pensar que sabemos e colocamos em prática, mas que são “magicamente” redimensionadas pela iminência da morte, que ela considera ser nossa maior mestra, ou, como ela disse na entrevista citada anteriormente, nossa melhor amiga. Afinal, é refletindo sobre a morte que finalmente começamos a aprender a nos tornarmos seres humanos melhores – o que nos permitirá não apenas ter uma existência que valha a pena viver primeiramente para nós mesmos, mas também deixar boas lembranças para aqueles que terão de lidar com a nossa ausência quando chegar a nossa hora.
DESABAFANDO – OU “TIRANDO ALGUNS MONSTROS DO MEU PEITO”
[Passei algumas semanas pensando se deveria publicar este adendo ou não. Eu não queria que nada que estivesse explícita ou implicitamente envolvido nele interferisse de forma negativa nas impressões de alguém sobre o livro. Porém, quanto mais o tempo passa, mais me convenço de que, justamente por estar carregada de sentimentos turbulentos e perturbadores, esta parte pode ser a mais relevante para convencer alguém da necessidade de ler este livro. Então, resolvi mantê-los, precedidos deste aviso: os parágrafos seguintes são intensos, profundos, crus, pesados, contundentes, fortes, sombrios, tristes, chocantes, selvagens! Você foi avisado(a). Continue lendo a seu critério.]
Embora eu acredite que tudo o que foi dito na resenha acima possa ser facilmente confirmado por qualquer pessoa que tenha lido esse livro, não posso negar que parte dos motivos pelos quais ele mexe tanto comigo é um contexto extremamente pessoal (e profundamente trágico). Para mim, uma das observações mais perturbadoras que a autora traz à nossa atenção é a eficiência de uma morte iminente para resolver conflitos de uma vida inteira. Trocando em miúdos com minhas próprias palavras, uma pessoa passa a vida inteira sendo um(a) completo(a) idiota – muitas vezes completamente consciente disso! – mas depois, quando a morte se aproxima, ela de repente decide pedir perdão e/ou perdoar. Eu realmente amo a maneira como a Dra. Ana Claudia subverte a lógica de muitas crenças populares, mas meu coração está longe de alcançar o mesmo nível de compaixão que o dela. Então, se ela está certa quando afirma que, em oposição ao que é dito, a última impressão é a que fica, bem, podem me chamar de insensível, fria, sem coração, o que for, mas, para mim, esse arrependimento questionável de última hora é simplesmente a atitude mais revoltante que uma pessoa pode ter ao final da vida, o que significa que isso só me deixará com a pior última impressão possível!
É simplesmente muito fácil alguém passar a vida inteira sabendo exatamente o que precisa fazer para se tornar a cada dia um ser humano melhor do que era no dia anterior, mas escolhendo deliberadamente fazer tudo exatamente ao contrário, confiando na garantia presumida de que, quando estiver à beira da morte, poderá aproveitar o fato de que as pessoas ao seu redor estarão sensibilizadas para pedir perdão, e tudo ficará bem – quer dizer, bem para quem está morrendo. A pessoa passa a vida inteira propositalmente fazendo questão de magoar os outros, de colocar sobre os ombros alheios fardos que ela mesma não suporta carregar, de ser desagradável, mesquinha, rancorosa, ressentida, incoerente, extrema e desnecessariamente rigorosa com tudo e com todos, implacavelmente intolerante para com os menores deslizes alheios enquanto, é claro, faz vistas grossas para seus próprios (profundamente graves) erros e infantilmente se recusa a ser confrontada por eles. Não há necessidade de fazer esforço algum para mudar! A pessoa pode cometer quantos erros quiser, ser tão má quanto quiser, tão miserável quanto quiser (consequentemente, tornar a vida de todos tão miserável quanto possível), e nunca se arrepender porque, quando a morte bater à sua porta e já nem houver mais tempo para que ela mova uma palha para se tornar alguém melhor e agir de maneira diferente, todos irão amolecer e perdoá-la em um piscar de olhos. Não consigo pensar em algo mais conveniente e egoísta! E eu realmente não encontro palavras para descrever o quanto isso me revolta! Eu simplesmente o-d-e-i-o pessoas assim!
Ironicamente, a pior tragédia de tudo isto é que, por imposição da natureza, não tendo tido o direito de escolha, uma pessoa dessas foi colocada na minha vida de uma forma que, mesmo após sua morte, nem ela nem a dor que tem causado poderão jamais ser apagadas. Como se isso não fosse suficientemente terrível, essa pessoa está agora numa fase em que não tem sequer capacidade intelectual para compreender os estragos que ficarão para sempre dentro de mim, muito menos para tentar mudar o seu comportamento (coisa que o orgulho nunca lhe permitiu fazer durante toda a vida). Em outras palavras, neste momento, esta é uma tragédia irreversível! Jamais entenderei a lógica daqueles que escolhem se eternizar na vida dos outros fazendo tudo o que sabem que as pessoas mais odeiam ao invés de criando momentos e sentimentos que deixarão saudades – nunca! E não adianta tentar me apresentar um monte de argumentos psicológicos que explicam isso ou aquilo. Provavelmente já considerei todos eles. Com muito esforço, meu cérebro pode até engolir, mas meu coração nunca aceitará, nunca!
Tudo isso para reforçar que, em suma, acredito que esta seja a maior lição que este livro tenta nos ensinar: como viver de forma que, quando chegar a nossa hora, aqueles que terão que lidar com a nossa ausência fiquem com o a dor de sentir nossa falta, não com a dor de terem sido forçados a conviver com um ser miserável, um fardo insuportável e uma ferida que nunca cicatrizará!
*Publicado originalmente em 25 de janeiro de 2024, no (agora inativo) perfil Musings N’ Music no Medium.
**Segundo a Bíblia, na verdade, nenhum ser humano é essencialmente bom, mas essa é uma loooonga discussão. Quem sabe venha em um outro momento.