Colcha De Retalhos

Estou há meses, senão anos, tentando colocar um mínimo de ordem no caos generalizado que se tornaram meus, literalmente, milhares de arquivos armazenados em nuvens, unidades externas, laptop, tablet, celular e, para choque de alguns (ou muitos), nos velhos e bons cadernos ou qualquer pedaço de papel onde eu possa rabiscar meus pensamentos. É tanta cópia de segurança que o que era pra ser controle virou o mais absoluto descontrole. Para piorar ainda mais, novas ideias não param de gritar nos meus ouvidos que elas também querem ser registradas. Mesmo cientes da pouca (ou nenhuma!) importância que têm, tagarelam tão alto que muitas vezes não me deixam dormir ou, atrevidas, me acordam do nada bem no meio da noite e não me dão sossego enquanto não se veem eternizadas em algum tipo de dispositivo. Além de exaustiva, a certeza de que não haverá tempo de vida que me permitirá colocar tudo (entrelinhas: muito mais do que arquivos) em ordem dói ao ponto de às vezes fazer os olhos verterem lágrimas que se juntam ao gelo que, em vão, tento enxugar. Nos esforços dos últimos dias, um desses incontáveis registros me lembra que não é de hoje que estou sempre tentando juntar pedaços (entrelinhas a critério da imaginação de cada um).


Colcha De Retalhos*

Estou aqui tentando juntar os pedaços. De novo, está tudo fora do lugar, esparramado, misturado, desconectado. Nada sobrou inteiro. Em todas as peças, algum traço de avaria: uma parte quebrada, um amassado, um trincado, um rasgo, um arranhão; no mínimo, algumas cores desbotadas. Como juntar todos eles em algo que faça sentido? Difícil acreditar que algo harmonioso, quem sabe até com alguma beleza, ou ao menos uma forma clara, definida, significativa, possa surgir a partir de tantos estragos. Impossível se manter ileso. De um modo ou de outro, o tempo sempre dá um jeito de deixar seu rastro em tudo que toca – e, como um vento traiçoeiro, furioso e violento, ele passou por aqui derrubando tudo. Agora, só para tirar a poeira de cada peça já vai ser uma trabalheira daquelas. Para colocar em ordem, então, arf!, me canso só de pensar! E não é só cansaço, não…

É que tem dias em que tudo, tudo parece perdido. O deslumbramento, a excitação, o ânimo, a beleza, o fôlego, a coragem, o sentido, até mesmo a fé – parece que tudo se foi, deixando para trás o que costumava ser tão natural e fácil. Parecia que era só respirar e pronto: sem qualquer esforço, lá estavam todas as peças em seus devidos lugares. Dava até para ficar trocando, criando nuances que acabariam resultando em uma forma mais definida, mais precisa, mais delicada, quiçá mais bonita. Mas o que um dia parecia brincadeira hoje me custa um trabalho árduo, suado, sofrido. Quando olho para essa bagunça toda, não sei nem por onde começar. Não importa o quanto eu me esforce, nada acontece. É que não basta caminhar; é preciso saber para onde ir. Mas para onde ir? Até a cor do dia se perdeu. Ficou só o cinza-azulado, uma neblina que faz tudo parecer confuso. Cada passo é carregado de medos e incertezas. No fim do dia, sobro com um monte de coisas iniciadas, mas nada de concreto concluído. Pareço trabalhar em vão. Não sei onde, nem como, nem quando, mas acho que desaprendi, perdi o jeito. Estará a inspiração também perdida?

Aí, de repente, no meio de tantas incertezas, enquanto eu ainda me perguntava se aquela teria sido a decisão correta, você surge de surpresa e, com um único movimento, tudo se encaixa novamente. Jamais poderia imaginar. Fiquei quase paralisada. Mal pude acreditar! Acho que foi seu jeito de mostrar que eu até posso juntar os pedaços, mas, como em uma colcha de retalhos, quem faz a costura final é sempre você. Entre tantos retalhos, mesmo quando não vejo, sei que você está sempre aí, sendo a primeira estrela da noite, reconstruindo caminhos, mantendo acesa a última fagulha de sorriso, recosturando histórias, fazendo o que só você pode fazer. Mesmo quando as coisas não parecem tão bem como quando costumávamos tocar o céu, você está sempre aí, no controle de tudo. É pelo avesso que vejo como arrematou cada detalhe. Bom saber que você, que não pode ser encontrado em qualquer espaço sagrado, nem em qualquer forma pronta ou qualquer fórmula supostamente mágica, me entende assim do jeito que sou. Que você nunca permita que a minha fé se perca – não por causa do paraíso, mas porque sem ela fica difícil demais suportar os dias aqui.

As cores estão voltando aos poucos. De volta aos meus pedaços, tem partes que só você pode restaurar.

Estou aqui, esperando pelo seu próximo movimento.

Estou sempre por aqui, juntando pedaços.

MÚSICA PELOS MEUS OUVIDOSORAÇÕES SUBJETIVAS

♪ LOST IN SPACE
Lighthouse Family
[Paul Tucker, Timothy Charles Laws]

Sem jamais ter feito parte do “repertório de louvor” de nenhuma igreja cristã (pelo menos não que seja do meu conhecimento), esta música é para mim uma das mais belas orações que já ouvi. Em seus versos, um homem cansado das atitudes egoístas daqueles que o cercam revela buscar ardentemente pela única razão que o mantém sorrindo, sua primeira estrela da noite, sem a qual estaria perdido no espaço. É nesta estrela, que está sempre por perto fazendo o que tem de ser feito e cujo brilho forte alivia sua solidão, que ele ancora o satélite de sua alma e deposita a fé que não quer perder.

Embora goste de conhecer as histórias das canções, às vezes prefiro preservar intacto o sentido que elas têm para mim. Afinal, essa possibilidade de interpretações múltiplas e subjetivas é exatamente uma das grandes experiências que a Arte nos proporciona. Nunca procurei saber com que intenção original os compositores desta música a escreveram, muito menos fui atrás de leituras de outras pessoas. Mas, se estes versos não puderem ser compreendidos como uma (profunda) adoração, eu não sei o que mais pode ser. 🤷🏻‍♀️ Enquanto isso no meio cristão, afff… Talvez um dia eu cutuque essa caixa de maribondos…

[faixa #4 na playlist Musings N’ Music Soundtrack]


BÔNUS

Para quem têm a sorte de morar em países onde o videoclipe oficial está disponível, estas são algumas das poucas cenas que meus (limitados) olhos acham que vale a pena ver. Tendo ao fundo uma cidade que pode surpreender alguns, as imagens são banhadas por uma linda luz azulada que reflete com sofisticada delicadeza a melancolia do eu-lírico [afinal, em inglês, blue é uma palavra que nomeia não apenas uma cor, mas também um sentimento].


*Publicado originalmente em 21 de novembro de 2017 no meu extinto site With All My Heart


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