“Você tem saudade do Brasil?”
O que era pra ser uma pergunta de resposta “sim” ou “não” me remeteu imediatamente a uma viagem no tempo. Poucos dias antes, havia me sentido sobrecarregada pela “lista de materiais escolares” necessários para a última faculdade que fiz. Ao invés de itens como lápis, borrachas, apontadores, canetas, cadernos e livros, o “material” exigido era na verdade um só, porém descrito por um monte de termos que mais pareciam uma curiosa sopa de letrinhas: monitor de 15 polegadas, resolução FHD, 32GB RAM, HD SSD 512GB, Nvidia 1060, Intel Core i7, portas USB+HDMI, Windows 10, Processador X-64. Trocando em miúdos, um computador. Melhor dizendo, não um computador qualquer, mas um $upercomputador!1 “Mas era um curso de Engenharia de Inteligência Artificial. O que você estava esperando?” – alguns poderiam argumentar. Sim, era um curso de tecnologia de ponta. Ainda assim, não pude deixar de me lembrar que quando fiz minha primeira faculdade, também em um ramo da computação, o laboratório da instituição foi mais do que suficiente para aprender. Passei por todos os períodos e me formei sem ter um computador pessoal, item que só vim a adquirir, com muita resistência, já depois de alguns anos trabalhando na área. Ao reviver essas memórias, tive saudade do tempo em que a parte mais difícil de comprar o material escolar era escolher a capa do caderno – tarefa que se resumia a eleger qual era o modelo mais bonito.
Tenho saudade de caminhar pelos corredores dos prédios onde estudei e sentir um imenso (e provavelmente ingênuo) prazer por imaginar que ali dentro daquelas salas, feitas de tijolos e argamassa, estava sendo construído o saber. Tenho saudade das aulas em que os professores ensinavam a pensar. Por que o computador não me fez falta lá atrás? Porque os mestres provocavam o pensamento. Ninguém ia direto para um computador escrever um código em uma determinada linguagem de programação. Aprendíamos a escrever, de maneira muito semelhante à linguagem natural, o passo a passo das operações necessárias para resolver um determinado problema. A essa sequência de operações minuciosamente planejadas damos o nome de “algoritmo” – coisa que antigamente era ensinada por um professor com quadro negro e giz dialogando com alunos que escreviam com papel e lápis. Uma vez que o raciocínio lógico era desenvolvido, aprender as linguagens específicas era um detalhe de menor importância, uma evolução natural de um aprendizado que já havia sido solidificado. Hoje, antes mesmo de colocaram as mãos em um “velho” e bom caderno, crianças ganham, dos próprios pais, aparelhos eletrônicos que as mantêm entretidas por horas a fio. Não é de se surpreender que, de acordo com estudos recentes, temos pela primeira vez no mundo uma geração de jovens menos inteligentes que seus pais. Longe de me achar referência neste quesito, não tenho medo de afirmar que muitos destes jovens foram meus colegas de turma nesta última graduação que conclui. Mas o desgosto maior mesmo veio, salvo raras exceções, pelos professores. Por sequer compreenderem as perguntas que eu lhes fazia, frequentemente me respondiam: “procure no Google”. “Mas para isto eu não precisaria estar pagando uma fortuna!” – pensava (e sofria!) eu, que ainda ficava de burra por, na visão turva deles, não ter entendido o que eles acreditavam estar claro no material didático tão mal escrito que só com bola de cristal para adivinhar do que tratava. Mas bolas de cristal só existem em contos de fada…
Dizem que o propósito de tanta tecnologia é facilitar a vida, proporcionar mais tempo para nos dedicarmos ao que realmente importa e vivermos melhor. Parece-me que não está dando muito certo. Só vejo as pessoas cada vez mais doentes e afundadas em uma crescente falta de tempo. Quanto ao que era pra ser mais fácil, começando por coisas muito simples, tenho saudade de quando, para me entreter com a televisão, eu apertava apenas um botão e pronto! Lá estava meu canal preferido. Hoje, até encontrar o programa que quero, os cliques são tantos que eu acabo desistindo. Não chega a ser um grande problema (afinal, nem tem mesmo muito que valha a pena ver), mas “mais fácil” com certeza não ficou. Falando em televisão, tenho saudade de quando propagandas não mostravam cenas violentas e/ou de terror que agora me assustam abruptamente sem me dar a chance de “desver” o que já vi, muito menos práticas indecorosas que têm ditado as regras do mundo. E, em um mundo regido por imagens, tenho saudade dos filmes de 24 poses (36 era um luxo!). Para quem não tem a menor ideia do que eu estou falando, tratava-se de um dispositivo para tirar fotos. Eras atrás, fotos tinham o propósito de registrar momentos especiais (e verdadeiros), não cada minuto (quase sempre encenado) da vida. Comprávamos um desses arcaicos dispositivos, inseríamos dentro de um aparelho chamado “máquina fotográfica”, escolhíamos cuidadosamente qual momento gostaríamos de eternizar e, quando acabávamos de gastar todas as poses, enviávamos o tal filme para um processo chamado de “revelação” – que apenas dois ou três dias depois finalmente nos daria, impressas em papel, as imagens que tanto queríamos ver. Só então saberíamos se o olho piscou, se o sorriso ficou torto, se alguma orelha foi cortada ou todas ficaram inteiras. Mas falemos de algo que todos nós ainda conhecemos.
Tenho saudade de colocar comida no prato sem ficar pensando no que é carboidrato, proteína, fibra, vitamina, mineral ou sei-lá-mais-o-quê. Simplesmente comia o que queria e pronto! Incrivelmente, sempre funcionou tão bem! Hoje penso em tudo isso e, ironicamente, além de precisar de tomar suplementos, fui há pouco diagnosticada com uma anemia (já em tratamento). Tenho saudade do tempo em que, ao visitar alguém, a gente comia o que fosse oferecido, mesmo odiando. Aconteceu no final dos anos 90, mas me lembrarei para sempre de ter passado mal uma noite inteira para não ofender uma senhorinha carente que tudo que tinha para me oferecer era café (minhas papilas gustativas, meu estômago, meu corpo inteiro e, especialmente, meu nariz não suportam café!). Em contrapartida, nos valíamos da mesma praticidade quando alguém vinha nos visitar. Nada de sofrer porque fulano não come isso, ciclano não come aquilo. É claro que algumas restrições alimentares e/ou ideológicas podem, e devem, ser respeitadas, principalmente entre pessoas íntimas. É o nível de frescura que está demais! Mas, encerrando esse tópico de comida com uma pitada de humor, ai que saudade de comer o mundo sem engordar!
A propósito de prazeres, confesso que é de fato uma paz de espírito a conveniência de ouvir a música que quero quando eu bem desejo e, mesmo que os serviços de streaming falhem, poder recorrer à minha coleção particular de músicas digitalizadas. Dito isto, quase tenho saudade de esperar as músicas preferidas serem tocadas em uma rádio, torcendo ansiosamente para o locutor linguarudo não começar a falar antes do fim, para poder gravá-las em uma fita cassete. Tenho saudade de quando os artistas e músicas tinham nomes pronunciáveis, letras do alfabeto comum, caracteres que existiam no teclado do computador ou, melhor ainda, da máquina de escrever. De uns tempos pra cá, até mesmo alguns de meus artistas preferidos têm criado músicas com nomes que me fazem pensar em como o locutor as anunciaria (mas, afinal, ainda existe rádio?). Tenho saudade de colecionar CDs, saudade dos encartes grandes dos discos de vinil (daquele chiado realmente não sinto a menor falta!). Além de trazerem preciosas informações hoje praticamente impossíveis de serem encontradas, não raras vezes eram também belíssimos trabalhos gráficos. Tenho saudade do tempo em que, ao invés de singles que são só mais um lançamento do mês (ou da semana, ou, pior ainda, do dia), os artistas lançavam álbuns completos que ouvíamos tão repetidamente que logo as músicas se tornavam parte da vida da gente, marcando nossas mais valiosas memórias. Tenho saudade de quando as músicas que faziam sucesso eram as que enchiam minha alma de harmonia e poesia, não de vergonha de dizer que sou brasileira (não que o resto do mundo ande muito melhor). Em pensar que o que tocava de pior nas rádios de outrora era ainda infinitamente melhor do que agora dita o que é “sucesso”… – só com aspas!
Tenho saudade de ver o trailer de um filme e combinar com as amigas de assistirmos juntas quando chegar ao cinema. Tenho saudade de ir dormir nas casas delas e, no caminho, entrar em uma vídeo locadora (alguém ainda sabe o que é isso?) e escolher 2 ou 3 títulos para vermos em um fim de semana – ou nem dormir nem ver filme; apenas conversar noite adentro sobre os mais diversos temas, dos fúteis aos profundos e, claro, imaginar como seria o futuro. Agora que o tal futuro chegou, tenho saudade de um passado em que, quando as pessoas queriam nos dar um presente, elas dedicavam seu tempo (que, por si só, já é uma das coisas mais valiosas que podem nos dar), pensavam carinhosamente nos nossos gostos e, mesmo correndo o risco de não agradar, nos surpreendiam com algo de concreto ao invés de simplesmente nos enviar um “vale” que acaba virando um “E agora? O que eu compro com isso?” – porque elas vão perguntar o que você comprou! Em tempo: sim, há raros casos em que tais vales fazem sentido. Quando me mudei, quase sem móveis, para a casa onde moro hoje, um amigo querido me presenteou com um desses e não consigo imaginar o que teria sido melhor, pois eu mesma ainda não tinha a menor ideia de como viria a planejar o ambiente. Mas tem um detalhe: não só ele entregou o vale pessoalmente, como junto a ele adicionou um cartão escrito à mão. Dá gosto de ver quando revisito minha gaveta! Tenho saudade dos dias em que, enquanto amigos aguardavam a comida em um restaurante, eles conversavam, riam ou até mesmo choravam, olhando nos olhos uns dos outros, ao invés de mantê-los grudados em uma tela que parece uma extensão de suas mãos. Tenho saudade também de quando se encontravam para comer um bolo e a conversa não ia, inevitavelmente, parar no chatíssimo assunto de política; sobretudo, de quando aquele vínculo mágico jamais seria desfeito por terem opiniões divergentes. Que tragédia acabar uma amizade de uma vida inteira por causa de dois estranhos que nunca choraram nossas lágrimas nem celebraram nossas alegrias, sequer sabem de nossas existências!
Falando em vidas inteiras, tenho saudade do tempo em que pessoas entre seus quarenta e cinquenta anos não eram mais cobradas para ter um emprego, mesmo porque muitas já tinham até se aposentado nessa peculiar faixa de idade que agora as lança em um estranho limbo: para trabalhar, são ainda muito jovens; para todo o resto, inclusive para serem contratadas a essa altura da vida, são velhas demais (oi?). Tenho saudade do período em que mulheres podiam (se quisessem, é claro!) ser donas de casa sem que ninguém olhasse para elas como quem diz “como assim você não faz nada?” – isto quando não verbalizam tamanha bobagem com todas as letras em alto e bom som, como se cuidar de marido, filhos, cachorros, gatos, galinhas,2 plantas, além de todas as tarefas envolvidas na manutenção de uma casa e, se sobrar tempo, delas mesmas, fosse “fazer nada”. Ainda sobre o universo feminino, tenho saudade de quando beijos podiam ser roubados sem serem automaticamente tomados por abuso, se não por violência. É óbvio que nenhuma violência pode ser tolerada! Mas entre abuso/violência e ímpetos de corações apaixonados existe um oceano de distância que quaisquer indivíduos – homens e mulheres – minimamente inteligentes e bem intencionados sempre saberão reconhecer. Todo esse (literalmente) não-me-toque acaba com a magia de qualquer romance, seja adulto ou adolescente, como neste singelo e ingênuo comercial que me enche de saudade (e que hoje provavelmente sequer seria veiculado). [A qualidade do vídeo é péssima, eu sei. Ainda assim, se você foi adolescente no Brasil no início dos anos 90, aposto que também vai sentir saudade!]
E a propósito de não-me-toques, tenho saudade de não precisar ficar medindo cada palavrinha de uma frase para se encaixar no “politicamente correto”, com receio de que as pessoas, que agora parecem feitas de porcelana, se ofendam porque estamos simplesmente nos referindo ao que algo ou alguém de fato é. Os exemplos são muitos e causariam polêmicas nas quais não quero entrar. Mas recorro à minha amiga Matemática, uma ciência por enquanto ainda exata, apesar de alguns lunáticos já defenderem também que dois mais dois pode não ser quatro, para ilustrar com uma metáfora bem abrangente: é como se o simples ato de chamar o quadrado de “círculo” tivesse o poder de torná-lo redondo. É de um ridículo que não tem tamanho! Apesar de ter nas palavras uma das minhas maiores paixões, fico perplexa com a incapacidade de perceber que a intenção está muito além delas. A mera substituição de palavras não tem o poder de mudar as coisas em si mesmas nem a mentalidade e os sentimentos perniciosos de quem, por qualquer motivo, se julga superior aos demais. Inúmeras vezes presenciei pessoas sendo rudes através das palavras mais delicadas, frequentemente pronunciadas por vozes tão doces que mais pareciam uma canção de ninar. É preciso ter uma perspicácia privilegiada para perceber a maldade que se escondia nelas. Mas enquanto certos seres se apegam apenas às nomenclaturas, seus falatórios soam somente tolice. O complicado mesmo é que insistem em acreditar, aparentemente com todas suas forças, que o quadrado é de fato um círculo! Olham para uma figura que consiste em quatro linhas retas formando quatro ângulos retos e enxergam nela uma circunferência! E ainda chamam de desrespeitosos, intolerantes, preconceituosos, ignorantes, alienados e sabe-deus-mais-do-quê aos que se recusam a validar tal insanidade… Ai que cansaço que dá! Tenho saudade de quando as coisas e pessoas simplesmente eram o que pareciam ser.
Voltando à tecnologia, por mais que eu reconheça que seus avanços são inestimáveis para manter os laços com os amigos distantes (e ai que saudade de quando morávamos todos na mesma cidade!), tenho uma saudade enorme de um tempo em que as pessoas não mandavam mensagem de texto perguntando se podiam ligar. Simplesmente ligavam. Mais saudade ainda tenho de quando não existiam identificadores de chamada. Quer dizer, existiam, mas não eram acessíveis, tampouco previamente embutidos em qualquer celular “básico” que se tente comprar (ah, e o meu conceito de “básico” era tão diferente!). Como não sabíamos quem tinha ligado, não havia a obrigação implícita de atender, muito menos de retornar a ligação. Ninguém iria morrer de ansiedade porque não conseguiu falar conosco em um determinado momento, nem veríamos/sentiríamos aquela chamada perdida como mais um item na nossa lista de pendências para resolver. Se podíamos atender, atendíamos. Se não, as pessoas tentavam de novo até uma hora dar certo. As conversas aconteciam quando era possível acontecer – e estava tudo bem! No máximo, as pessoas ficavam preocupadas se nós estávamos bem. Agora, numa espécie de egocentrismo às avessas, por qualquer desencontro bobo, logo assumem que “fulano não quis me atender” – e haja argumento (e paciência) para convencer que não foi isso! Tenho saudade até do tempo em que eu sequer tinha telefone em casa porque era “coisa de rico” (bem declarado em imposto de renda, alguém além de mim ainda se lembra disso?) – de vez em quando um amigo aparecia completamente de surpresa e enchia meu dia de alegria! Ah, e como eram preciosos – portanto, muito bem gastos – aqueles três minutos que as fichas telefônicas nos proporcionavam antes que as ligações fossem interrompidas! Sim, sei que estou escancarando minha idade.
Tenho saudade de quando não existiam aplicativos de comunicação instantânea. As cartas eram escritas à mão e levavam dias, semanas, meses, para chegar – e desejávamos tanto que elas chegassem! Aquela era uma ansiedade saudável. Hoje, ao invés de cartas salutarmente espaçadas por meses, semanas, ou pelo menos alguns dias, as pessoas nos bombardeiam com tantas mensagens que sequer nos sobra tempo para sentir saudade delas. Para não voltar tanto no tempo, tenho saudade de trocar e-mails, que, sim, facilitavam a comunicação, mas não denunciavam que tinham sido recebidos, tampouco lidos. Assim, não sentíamos que era preciso parar o que quer que estivéssemos fazendo para dar uma resposta imediata para alguém que não sabe esperar, muito menos explicar o porquê da “demora” em responder. Há quem nunca tenha sentido essa “obrigação”? Adoro essas pessoas que pensam que meu mundo gira em torno delas – #sqn! Ôpa! Olha eu sendo moderna! Ou #sqn também já é coisa do passado? Pois eu sou implicante! É claro que cada caso é um caso, mas no geral, quanto mais percebo que a pessoa se acha no direito de me demandar alguma “urgência”, mais eu me demoro; e quanto mais eu percebo que ela acredita que eu lhe devo alguma “satisfação” pela minha “demora”, mais eu faço questão de me calar. A essa altura da vida, estou grandinha demais para prestar contas a quem não paga minhas contas. Tenho minha própria ansiedade para gerenciar. Recuso-me a absorver a de terceiros. Para alguns pode parecer egoísmo, mas é um princípio básico de primeiros socorros: para salvar alguém, é preciso, primeiro, estar a salvo, ou serão dois mortos ao invés de um!
A propósito de tanto imediatismo, tenho saudade do tempo em que ansiedade e depressão eram “frescuras de rico”. Nos últimos meses, conversando com algumas pessoas que compõem as classes menos favorecidas da sociedade (trabalhadores braçais), elas me contaram que estão fazendo tratamento contra tais doenças – o pacote completo: remédios, acompanhamento psicológico e psiquiátrico. Fiquei em choque. É óbvio que o fato de terem acesso a um tratamento que antes era privilégio exclusivo de uma minoria financeiramente afortunada é um avanço a ser celebrado! O que me assusta é perceber que até mesmo tais pessoas, que sabidamente lutam pela sobrevivência com uma força e alegria de dar inveja a qualquer nascido em berço de ouro, estão sucumbindo a fardos pesados demais. Se isto não for um sinal de que o mundo está cada vez mais doente, não sei o que mais pode ser. E falando em doenças (suspiro profundo!)…
Toda essa viagem no tempo aconteceu em agosto de 2019, quando a pergunta que abre este desabafo me foi posta. Jamais teria imaginado o que nos reservava o dia 31 de dezembro daquele mesmo ano. Milhões de vidas em breve começariam a ser ceifadas em todo o planeta e, para uma grande parte das que foram poupadas, sobrou um mundo onde não existe mais separação entre casa e trabalho. Sei que bilhões de pessoas, incluindo muitas das que eu amo mais visceralmente (senão todas!) discordam do meu pensamento, mas para mim esta realidade que nos foi imposta é um pesadelo que me atormentará até o fim dos meus dias. Tenho profunda saudade de quando trabalho era uma coisa que acontecia em um lugar que ficava a uma distância razoável de casa (notem bem, eu disse “razoável” – é claro que passar horas por dia no trânsito é desumano!). Pela manhã, aquele tempo gasto no deslocamento entre a casa e o trabalho dizia ao nosso cérebro: “ei, acaba de acordar aí; daqui a pouco você precisará estar funcionando a todo vapor”. No decorrer do dia, havia interações reais, com pessoas reais, às vezes uma pausa para um lanche que, combinado com assuntos de outros universos, revigorava tanto o corpo quanto a mente. Ao fim da tarde, o momento de fazer o caminho inverso dava ao nosso cérebro a notícia tão ansiosamente esperada: “em breve estaremos de volta em casa, nosso refúgio de descanso de toda essa agitação”. Hoje tudo acontece num mesmo espaço e o pobre do cérebro fica todo perdido, sem entender o que está havendo, o porquê de tanta mudança brusca, nem sente mais saudade de casa (afinal, não é possível sentir saudade do que está o tempo todo ao seu redor). Sei que estou absolutamente só no entendimento de que algumas poucas conveniências não compensam os inúmeros malefícios que esse “novo normal” trouxe para o dia a dia de quem sobreviveu a esse enredo de ficção científica. Mas, a essa altura da vida, já engoli (sem sal!) o fato de que, em muitos aspectos, inclusive nas minhas muitas e crescentes saudades, estarei e serei, para sempre, só – absolutamente só!
Enfim, esta é uma lista que não tem fim. Em poucas palavras, tenho saudade de um mundo que não existe mais; não existe mais…
(E Renato Russo achando que o mundo andava muito complicado 33 anos atrás…)
1 Atualização: em novembro de 2024, o tal $upercomputador que outrora processava pesados programas de Inteligência Artificial agora às vezes me faz temer que, a qualquer momento, ele vai explodir enquanto uso um simples editor de textos.
2 Referência a Família, música de Arnaldo Antunes e Toni Bellotto gravada pela banda Titãs no álbum Cabeça Dinossauro (1986).
♪ O MUNDO ANDA TÃO COMPLICADO
Legião Urbana [Renato Russo, Dado Villa-Lobos, Marcelo Bonfá]
Lançado em dezembro de 1991, o álbum V, da banda Legião Urbana, apresentava ao público sua composição mais complexa, Metal Contra As Nuvens, e também uma das mais singelas: O Mundo Anda Tão Complicado. Nesta música, em contrapartida a um mundo que é percebido pelo eu-lírico como demasiadamente complicado, os versos simples, quase pueris, revelam seu desejo de se refugiar de tal mundo encontrando descanso e prazer em atividades corriqueiras da vida.
Não quero bancar a ativista chata (é um pleonasmo isso!), mas confesso que fiquei um tanto hesitante em fazer essa referência, pois, como amante de animais, me dói ouvir a menção a um prato típico feito à base de um simpático bichinho que, inesperadamente, ganhou um simbolismo inusitado e especial em minha vida. Não tenho como negar, contudo, que, além de estar cravada na minha adolescência, é uma música que ecoa em minha mente quase todos os dias, cada vez que suspiro de saudade do mundo que não existe mais…
[faixa #5 na playlist Musings N’ Music Soundtrack]